quinta-feira, 21 de junho de 2012

Sobre as paixões de Patti Smith e a Nova Iorque de Só Garotos


Quando o fotógrafo Robert Mapplethorpe morreu, vítima da Aids, em 1989, Patti Smith havia prometido que, um dia, escreveria a história dos dois. E, assim, a cumpriu, com o premiado Só Garotos. Mas, mais do que a biografia de um relacionamento que foi além do desejo carnal ou do amor enfadonho, Smith produz um relato de uma época de efusão e contestação – política e artística. No livro, a performer se despe e coloca a mostra a intimidade e os dramas de sua vida, em uma teia de nomes e referências de um período fervoroso. Em meio a este cenário, a cumplicidade de um romance boêmio que transformou aquela menina pobre, criada no subúrbio, em uma das precursoras do punk-rock nos EUA.

O pano de fundo é a Nova Iorque dos anos de 1960 e 1970 em todo o furor da contracultura, com os hippies no Washington Square Park e os artistas de vanguarda do Chelsea Hotel e do Max’s Kansas City – o reduto da turma de Andy Warhol. É nessa metrópole efervescida que Patti Smith desembarca e começa uma nova vida, após sair da casa dos pais, sem dinheiro, apenas com um livro de Arthur Rimbaud e o sonho de se tornar poetisa. Na mesma situação está Mapplethorpe, quando se conhecem. E, juntos, os dois compartilham um amor dedicado à arte. Um relacionamento não somente afetivo, mas também estético.

Pouco convencional para a época, o casal vive uma vida de criatividade e cumplicidade artística. Jovens e pobres, mas felizes e sonhadores. Ou “just kids”, como conta Patti – um verdadeiro retrato daquela geração de 68, diga-se de passagem. Mesmo quando Robert assume sua homossexualidade, ou se prostitui para contribuir na renda, os dois mantém este carinho e dedicação. Um compromisso mútuo e pela arte por quatro décadas e que, no final, separou o sexo do amor.

O fotógrafo, por si só, é um grande emaranhado de emoções e colisões. Lendo o romance, a impressão que se tem é que Robert é um turbilhão de surpresas, cheio de fases e contradições, difícil de compreender – talvez, até mesmo à própria Patti Smith. E é justamente aí que está o fascínio dela por ele. Andrógeno e ambicioso, mas sensível. Incompreendido e dúbio, mas apaixonado. Com os sentimentos de Mapplethorpe à flor da pele, Smith consegue sua inspiração e os dois parecem formar uma fonte de proeminências artísticas, em uma espécie de multicontaminação e simbiose. “Ninguém pode imaginar a felicidade mútua que sentíamos quando sentávamos para desenhar juntos. Íamos assim embalados por horas”, conta a autora.


Uma biografia do rock e de toda uma geração. Mas, esqueça o clichê “sexo, drogas e rock ’n’ roll”. Apesar de tê-lo no livro, o relato vai além. Conhecida por uma atitude descolada e um quê poético singular, Patti Smith se coloca nua ao leitor. Ela expõe seus dramas, fragilidades e como trilhou sua carreira na cúpula artística da época – que, por sinal, recebeu um empurrão quando cortou seu cabelo parecido com o de Keith Richards. As vezes que chorou quando Robert saiu para se prostituir, sua passagem obscura no Hotel Allerton e a busca dolorosa de realizar artisticamente, com o desfecho em seu primeiro álbum, Horses, de 1975. 

Só Garotos é a memória pessoal de uma época vivida e de uma carreira construída, mas também o registro, através do olhar de Smith, de uma Nova Iorque de vanguarda. Também, um tributo a Robert Mapplethorpe e a uma paixão além do desejo. A obra é uma maneira de Patti manter vivo o seu grande amor. “Fiquei imóvel, congelada; então, lentamente, como em um sonho, voltei à poltrona. Naquele momento, Tosca começava a grande ária Vissi d’arte. Vivi por amor, vivi pela arte. Fechei os olhos e juntei as mãos. A Providência decidiu como eu me despediria”, conta Patti Smith, no momento que recebeu a notícia da morte de Robert.

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